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Sobre Adelaide, Zorra Total e o racismo sem graça
Publicado em 09.01.2013 12:24:20

Os defensores do programa e do quadro apresentam a argumentação de sempre, em prol da “liberdade de criação”, e de que se trata apenas de um programa humorístico. Mas será que a expressão humorística é descolada da realidade?

Por Dennis de Oliveira

O programa Zorra Total, da Rede Globo de Televisão, está sendo questionado na Justiça por causa da personagem “Adelaide”, interpretada pelo ator Rodrigo Santanna. O ator global se faz passar por uma mulher negra, desdentada, com toda a estética de uma pedinte e que, em determinado programa, expressou falas de conteúdo preconceituoso. Na mais impactante das cenas, ela, ao encontrar uma palha de aço, diz que se tratava do cabelo da filha. Várias pessoas denunciaram o quadro à Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial, órgão ligado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.

O advogado Humberto Adami protocolou ação civil pública contra o programa, alegando desrespeito ao capítulo VI do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288). Adami lembra que essa é a única personagem negra do programa e que aparece nessa condição.

Os defensores do programa e do quadro apresentam a argumentação de sempre, em prol da “liberdade de criação”, e de que se trata apenas de um programa humorístico. Mas será que a expressão humorística é descolada da realidade?

Sobre humor e risos

O filósofo Henri Bergson é costumeiramente citado nos estudos sobre comicidade e riso. Segundo ele, o riso é um despertar da consciência que se liberta do automatismo e do mecanicismo das ações; por isso, é uma interpelação à inteligência pura. Por essa razão, Bergson atribui à narrativa cômica uma qualidade cognitiva; para ele, o riso é uma expressão de entendimento de determinado(s) fenômeno(s).

Já o pensador russo Mikhail Bakhtin atribui ao riso uma possibilidade crítica presente nas culturas populares com as metáforas da inversão. Analisando os carnavais medievais, Bakhtin demonstra que as figuras cômicas e grotescas – o rei Momo, os bufões, homens vestidos de mulheres, entre outros – representam olhares invertidos de uma ordem rigidamente hierarquizada, transformando-se, assim, em um espaço de crítica. Rir da inversão é uma forma de retirar a seriedade (construída ideologicamente) da ordem, principalmente pelo fato de que a comicidade expressa o fato de que uma outra ordem é possível.

O humor construído a partir da sedimen­tação de preconceitos, em uma leitura bersoniana, significa uma interpelação a um pensamento que se “liberta” de comportamentos automatizados contidos pelos mitos da democracia racial, ainda vigentes na sociedade brasileira. Expressam a inteligência pura do racismo.

Por outro lado, a inversão simbólica de um comportamento desejável e reivindicado pelos movimentos sociais antirracistas (o comportamento racista como algo cômico) é uma crítica ao antirracismo, é a sua desqualificação e desmoralização.

Em um país no qual o racismo é uma prática vigente, mas envergonhada, e negada peremptoriamente por quem o pratica, o deslocamento simbólico do racismo para o humor cumpre duplo papel – o de ser uma expressão pura, sem qualquer “amarra” de códigos éticos e normativos, do racismo mais cruel, e também de ser uma forma de desqualificação do discurso antirracista.

As reações às atitudes de quem critica programas como esse se encontram neste mesmo diapasão: defesa da “liberdade” de criação e ridicularização das ações propostas.

Tendências do racismo à brasileira

O avanço do movimento antirracista brasileiro nos últimos anos, no sentido de buscar a equidade de posições entre brancos e negros por meio de ações afirmativas, toca fundo no coração da estrutura social brasileira: uma sociedade erigida com base em privilégios concedidos racialmente. Incomoda lutar por vagas na universidade pública, por empregos, por igualdade de oportunidades. Buscar a igualdade significa redistribuir oportunidades, e isso, por sua vez, implica mexer em privilégios.

O incômodo dos privilegiados racialmente encontra dificuldades em se expressar em um espaço público já contaminado pela condenação moral do racismo enquanto prática política. Daí o seu deslocamento para o campo simbólico, em especial o midiático e, particularmente, o espaço do entretenimento e do humor (lugares de fala em que se consolidam estilos de vida e comportamentos cotidianos).

O racismo midiático tenderá a ser uma das formas mais agudas de expressão da ideo­logia racista. De qualquer forma, o que se conclui desta rápida análise do caso é que o racismo do programa Zorra Total – e de qualquer outro programa – não tem graça nenhuma.

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