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“Me desculpe, você é preto”: técnicos reclamam de racismo
Publicado em 10.04.2013 11:48:44

 Lula Pereira / Crédito:Drawlio Joca

Cada vez mais raros no comando de equipes, técnicos negros, como Lula Pereira, enfrentam desemprego e levantam a voz contra suposto racismo no alto escalão do futebol

Pernambucano, Lula Pereira viveu infância pobre em Olinda, embora gravitasse em torno de uma família de boleiros. O pai, ele só “conheceu” aos 15 anos, folheando um exemplar de PLACAR de 1971, em que o progenitor aparecia perfilado com o time do Jequié, da Bahia. Inspirado no tio, um ex-goleiro do Fluminense, Lula vingou como zagueiro. Defendeu Santa Cruz, Sport e Ceará, onde parou de jogar aos 30 anos e ganhou sua primeira oportunidade como treinador.

Antes de a nova carreira decolar, fez estágios no Barcelona, Milan e Ajax. Depois, estamparia 17 clubes no currículo, incluindo o Flamengo. Contudo, seu último trabalho durou menos de um mês. Foi demitido do Ceará após quatro vitórias, um empate e uma derrota. Hoje, aos 56 anos, ele acredita que os 12 meses de ostracismo não estão relacionados à competência, mas sim à cor de sua pele. “Já ouvi de empresários: ‘O pessoal do clube gostou do seu perfil, mas, me desculpe, você é preto’”, conta, sem se resignar com a crueza dos cartolas.

Técnicos negros, de fato, estão à margem da elite do futebol nacional. Apesar de todas as cinco formações da seleção brasileira que venceram a Copa do Mundo contarem com pelo menos cinco jogadores negros, apenas o ex-meia Didi construiu carreira notável como treinador. O cenário permanece estável. Não há um negro no banco dos times que disputam os campeonatos Paulista e Carioca deste ano, os principais estaduais do país. Entre os 40 técnicos que terminaram as séries A e B do último Brasileiro, somente Anderson Silva, do Ceará, era negro. Ele liderou o time como interino nas últimas rodadas da segunda divisão e, ao fim da competição, retornou ao posto de auxiliar.

QUEBRA-GALHO

Era 2009 quando o ex-volante Andrade sagrou-se o primeiro técnico negro campeão brasileiro. Como em outras quatro ocasiões, ele havia assumido provisoriamente o Flamengo, no meio do campeonato. Foi efetivado e levou o rubro-negro ao hexa, mas acabou mandado embora cinco meses depois, com 70% de aproveitamento.

Para Lula Pereira, o negro é visto como “tampão” pelos clubes. “Andrade não foi o escolhido do Flamengo. Foi um acaso, uma solução temporária. Só assim que técnicos negros têm chance.” No caso de Andrade, mesmo após a efetivação e o título, seu salário era quase 20 vezes inferior ao de outros técnicos de ponta, como Vanderlei Luxemburgo. Com breves passagens por Brasiliense, Paysandu e Boavista, ele, que já afirmou ter sido discriminado no ramo, está sem emprego desde maio de 2012.

Situação semelhante à de Cristóvão Borges, que passou de auxiliar a técnico devido ao AVC sofrido por Ricardo Gomes em agosto de 2011. Antes de ser efetivado, no começo do ano passado, ele guiou o Vasco ao vice-campeonato brasileiro e, já em 2012, às quartas de final da Libertadores. Cobrado pela torcida, não resistiu à queda de produção do time e deixou São Januário em setembro. “Quando o Cristóvão saiu do Vasco, eu disse que ele dificilmente conseguiria emprego em outro grande clube brasileiro”, conta Cláudio Adão, ex-técnico de Volta Redonda e CSA-AL.

Sem oportunidades como treinador, Adão virou instrutor de atores que encenam jogadores de futebol na TV e no cinema, apesar de não ter abandonado o desejo de dirigir um clube profissional. “Infelizmente, o negro é tratado como analfabeto no futebol”, diz. A discussão sobre o suposto racismo ainda é tabu nos vestiários. Por meio de sua assessoria, Cristóvão Borges afirmou que não se sente à vontade para falar sobre o tema enquanto estiver desempregado.

 Serginho Chulapa dirigiu o Santos, de Marcelinho Carioca, em 2001. “Tive minha chance, mas não deu certo por causa de uns ‘probleminhas’ extracampo”, diz. / Crédito:Alexandre Battibugli

Segundo ele, entretanto, o período sabático é opção própria, pois teria recusado propostas a fim de atualizar conceitos e esperar uma oferta que represente maior projeção. Para Serginho Chulapa, ex-técnico e auxiliar do Santos, a ausência de treinadores negros na elite não é fruto de preconceito. “Existem grandes ex-jogadores negros com capacidade para treinar. Mas falta interesse do negro. Se não se preparar, não vai ter espaço.”

MERCADO SEM NEGRO

De acordo com o último Censo do IBGE, a população brasileira era composta em 2010 por 7,6% de pessoas que se declaram negras e 43,1% pardas. No futebol, o percentual de negros é maior. Em 1996, o Censo PLACAR registrou, entre os 264 jogadores dos 24 clubes da primeira divisão, 79 negros (30%). Atualmente, a maioria deles está aposentada dos gramados. Nenhum, porém, figura no comando de um time de expressão. “A questão do treinador negro é reflexo da nossa sociedade. Tirando o Joaquim Barbosa [presidente do Supremo Tribunal Federal], não há outro negro em evidência tomando decisões no Brasil”, diz o ex-zagueiro Roque Júnior, que pretende iniciar trajetória como técnico. “O futebol reproduz a divisão social do trabalho no país. O viés de preconceito é uma barreira para o negro chegar tanto à direção de uma empresa como de um time”, afirma Luiz Carlos Ribeiro, professor da Universidade Federal do Paraná e mestre em história social do futebol.

Segundo pesquisa de 2011 do Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), somente 9,6% dos executivos em cargos de direção e gerência na região metropolitana de São Paulo eram negros — incluindo pardos. Proporção inferior à de negros, como Roque Júnior e o ex-meia-atacante Paulo Isidoro, que fizeram o curso de formação de treinadores da CBF no ano passado: oito entre 47 alunos (17%). “O negro leva desvantagem no mercado de trabalho por causa da desigualdade social, que influi na falta de qualificação. Na esfera do técnico de futebol, embora a função imponha exigência intelectual, o preconceito é latente, já que a maioria dos técnicos brancos também é composta por ex-jogadores que vieram de camadas pobres da população”, diz Ribeiro. Lula Pereira vai além. “Luxemburgo é negro? Joel Santana? Não. São mulatos. Negro sou eu, Lula Pereira.”

Em sua visão, a dificuldade em se recolocar no mercado é agravada pela escassez de negros na gestão do futebol. “Não temos dirigentes ou presidentes de clubes e federações negros. Assim é impossível romper a segregação e as barreiras que enfrentamos”, diz Lula.

BANCO DE COTAS

Desde 2003, a NFL, liga de futebol americano dos Estados Unidos, adota o sistema de cotas raciais. Pela Regra Rooney, todas as franquias são obrigadas a entrevistar negros para os cargos de técnico e coordenador. Após a adoção da medida, o número de negros dirigindo equipes na NFL dobrou. No entanto, na temporada atual, nenhum afrodescendente foi contratado para as 15 vagas de comando disponíveis, o que tem motivado discussões em torno da necessidade de mudanças na regra.

Cláudio Adão: técnico do CSA-AL, em 2001 / Crédito:Marco Antonio

No Brasil, a instituição das cotas raciais no futebol ainda não é cogitada pela CBF, mas gera controvérsia. “Em um meio mercantilista e liberal como o futebol, o sistema de cotas seria inócuo e impraticável, não funcionaria”, diz Luiz Carlos Ribeiro. “É impossível obrigar um clube a contratar negros.” Lula Pereira discorda. “Nós, negros, vamos precisar de cotas, através de uma lei federal, como já existe nas universidades, para trabalhar no futebol.”

Por outro lado, há quem conteste que a escolha de profissionais pelos clubes leve — ou deva levar — em conta a cor da pele. “Eu nunca tive problema [com racismo]. Ser técnico é difícil para qualquer pessoa. É uma profissão de muita rotatividade e pouca estabilidade”, afirma o gaúcho Valmir Louruz, técnico com passagens por Internacional e Juventude. Para Serginho Chulapa, a falta de comandantes negros nos clubes de ponta é “uma coincidência. Não existe preconceito, mas sim uma preguiça do negro. O convite não vai chegar em casa. Não adianta fazer movimento. A classe [dos técnicos] é desunida”.

Roque Júnior, por sua vez, defende as cotas como solução paliativa e, sobretudo, uma cultura de inclusão racial. “Na época dos meus pais, os negros tinham baixa autoestima, se sentiam oprimidos e ficavam estagnados. Hoje nos preparamos mais, corremos atrás das oportunidades, mas elas não aparecem. Ainda existe um racismo velado não só no futebol, mas em toda a sociedade.”

Enquanto as cotas não saem da prancheta, os negros seguem sem representantes no topo da pirâmide da bola que possam virar o jogo. “Eu estou à toa em casa, não consigo trabalhar. Cadê o Cristóvão? Cadê o Andrade? É inadmissível que o Brasil, o país da miscigenação, não tenha um negro à frente de um clube grande”, diz Lula Pereira, à espera de propostas que não sejam rebocadas por pedidos de desculpa.

 

Por Breiller Pires, da PLACAR