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Franz Kafka e o horror à burocracia
Publicado em 08.03.2013 10:07:41

Franz Kafka, falecido aos 40 anos em 3 de junho de 1924, no Sanatório de Keerling, perto de Viena, sem dúvida alguma foi um dos mais enigmáticos escritores do começo do século 20. Sua narrativa – de raiz expressionista – assemelha-se a um mosaico no qual as partes parecem não afinarem-se, como se colocasse um quadro após o outro sem que houvesse uma ligação entre eles. O que os une é um tema oculto que paira impassível e impune sobre tudo: o Poder da Burocracia. Força anônima que impera. O escritor tcheco de língua alemã consagrou-se, entre tantas outras coisas, como um dos primeiros literatos denunciadores da poderosa e quase invisível máquina de moer seres humanos que, ao longo do século 20, passou a controlar tanto as sociedades do Ocidente como as do Oriente.

Da Burocracia Tornado “filósofo oficial” do regime prussiano, G.F.W. Hegel definiu na Rechtsphilosophie (A Filosofia do Direito, 1821) a burocracia como um estrato especial que não se vinculava a classe alguma e, altiva, afirmava-se por agir em função do “bem comum”. Nenhum particular poderia sequer imaginar que ela atuasse em favor de A ou B.

Na sua essência ela era neutra e, no geral, incorruptível. Obedecendo ao seu Senhor, o Estado (o imperador, o rei ou o príncipe), dizia atender as necessidades dos súditos ou dos vassalos sem ver rosto ou posição deles. A seu ver todos eram iguais.

Na percepção da burocracia, ela era uma “classe universal”, entendendo que os princípios gerais e lógicos do seu funcionamento se repetiam em qualquer canto do mundo onde houvesse uma sociedade organizada. Propunha-se como a essência do Poder do Estado, o principal instrumento da sua coesão. Não há Estado sem Burocracia e vice-versa.

Pouco mais de 20 anos depois, coube a Karl Marx, um ex-hegeliano, exercer uma contundente crítica ao velho mestre no seu ensaio Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, (Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, 1843), no qual refuta a tese da neutralidade da burocracia. Para Marx, ela não tem nada de imparcial.

Ao contrário, estrutura-se como uma engrenagem subdividida em departamentos, seções e subseções, à inteira disposição das classes dominantes (proprietários de terra, capitalistas, banqueiros, grandes mercadores etc), que fazem largo uso dela sem precisarem recorrer à violência. Coage seus dependentes ou a população por meio de infindáveis regulamentos e ordenações, impondo a obediência dos subalternos. É, acima de tudo, uma ferramenta de controle social.

Ainda que eventualmente ela possa voltar-se contra alguém da alta hierarquia social, por exemplo, forçar um barão ou um mercador a acertar seus impostos, é um episódio circunstancial e de difícil repetição. A sua meta política é manter a maioria disciplinada e afinada com as determinações que emanam das classes dominantes e que tem no funcionário (Beamte) seu fiel executor.

Por conseguinte, longe de pairar sobre as classes sociais, ela está sempre a serviço dos “de cima”. O que fez mais tarde o sociólogo Max Weber a afirmar que ela provou ser “o meio formal mais racional que se conhece para lograr um controle efetivo sobre os seres humanos”. Este mesmo Max Weber, no seu clássico Economia e Sociedade (Wirtschaft und Gesellschaf, 1922) a exaltou como uma “organização eficiente por natureza chamada para resolver racionalmente os problemas da sociedade e das empresas”.

Estava projetada como um utensílio para operar cientificamente nos moldes estabelecidos pela hegemonia da tecnologia imposta pela Revolução Industrial e pelas exigências do Iluminismo.

No mundo moderno ela é a mais representativa herdeira dos propósitos dos filósofos do século 18 de administrar a sociedade de acordo com as leis da objetividade e da eficácia, sem deixar-se influenciar pelos fidalgos e pelo clero e, menos ainda, pelo povo.

Origem da visão negativa de Kafka

Morto pela tuberculose, Franz Kafka descendia da pequena comunidade judaica da Boêmia de fala alemã radicada em Praga, na Tchecoslováquia (então parte do Império Habsburgo). O idioma tcheco era-lhe conhecido, porém, nunca se sentiu atraído em escrever naquela língua como tanto insistia sua derradeira companheira Dora Diamant. Sobre isso, ele comentou: “O alemão é minha língua materna, mas é o tcheco que me toca o coração”.

Filho do próspero negociante judeu Herrmann Kafka, Franz conseguiu formar-se em direito com relativa facilidade. Entretanto, sua verdadeira paixão era a literatura, fazendo dele um ser eternamente dividido entre ter que exercer o ofício de funcionário numa empresa de seguros e, por outro lado, levar uma vida quase que clandestina de escritor (seu pai, um autoritário pragmático, nunca o apoiou nas suas aventuras de homem-de-letras).

É de se cogitar que os relatos que ele fez dos inextrincáveis labirintos da burocracia, a retórica lógica dos chefes de seção para esconder a irracionalidade de tudo aquilo, veio-lhe exatamente da sua experiência diária de empregado do Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho, em Praga. É sabido que as companhias seguradoras, universalmente regidas pela paranoia, sempre temerosas em serem enganadas, esmeram-se nas exigências do cumprimento dos regulamentos e infinitos parágrafos que são impostos aos demandantes até lhes pagar o devido.

Todavia, nesta busca pelas raízes da burocracia, não deve omitir-se um fato bem anterior que estava incorporado à história de Praga. Desde 1355 ela havia se transformado na capital do Sacro Império Romano-Germano, e Carlos IV, da Dinastia Luxemburgo, seu imperador, fundou a Universidade de Praga, 1348, para formar seus quadros de funcionários. Dali, de Praga, começaram a ser despachadas as diretrizes – escritas em alemão – para os quatro cantos do Heilighe Reich. Quando Kafka começou a concentrar seu tema, a opressão dos funcionários sobre as gentes, transcorreram mais de cinco séculos e meio. Há, por certo, de levar-se em consideração no tipo de prosa que ele inventou a topografia da capital dos tchecos.

Praga possui até os dias de hoje uma trama de ruelas macabras que muito se assemelham aos mitológicos labirintos. Nelas surgem do nada surpreendentes portões de frente para as calçadas que, desvendados, levam para outra parte completamente desconhecida dos passantes, por vezes terminando em enormes casarões tétricos que parecem sempre inabitados.

Estes meandros urbanos medievo-barrocos, indecifráveis à razão, certamente devem ter inspirado o escritor desde que ele, estudante primário, percorria o trajeto de casa até a sua escola (ele formou-se num pequeno colégio, o Knabenschule Deutsche, o Ginásio Humanista Nacional Alemão, que atendia os judeus de cultura germânica), situada “bem no coração da cidade onde eu nasci”. Ou ainda, quando entrando na vida adulta, percorria com seus amigos do Circulo de Praga (Max Brod, seu amigo de sempre, Hugo Bergmann, Gustav Meyrink, Felix Weltsch, Oskar Baum e o romancista e poeta Franz Wertel) as vielas da Altestadt, a Velha Cidade, em direção ao Café Continental.

O malefício da burocracia

O gênio de Kafka foi ter percebido o transtorno maléfico que tais medidas tomadas pelos “círculos administrativos” exercem sobre as pessoas comuns. Uma nuvem permanente de desconfiança cobre as relações entre a empresa (estatal ou privada) e o beneficiário ou o solicitante. Trata-se quase de um jogo entre o gato e o rato, sendo que as exigências dela parecem não ter mais fim.

Para Kafka, esta se tornou a relação padrão do homem da sua época controlada pela aparelhagem burocrática que de fato governava. Não importando a forma ou inclinação do seu regime (monarquia ou república, conservador ou liberal), é o Bürokrat quem dá a última palavra. No interminável confronto entre o corpo de funcionários que trama as ciladas opressivas contra o homem comum, Kafka tomou clara posição a favor dos fracos e dos desamparados.

As novelas e contos dele, especialmente Der Schloss (O Castelo), Der Prozess, (O Processo), In der Strafkolonie (Colônia Penal), mas tantas outras mais, esforçaram-se em denunciar uma nova forma de opressão que emergia na Europa nos começos do século 20. Ela não era necessariamente resultante do conflito de classes, como os marxistas defendiam, ou da vontade dos poderosos que manipulavam a sociedade, e sim a do anônimo funcionário que se apropriava das engrenagens dos procedimentos exigidos pelo Estado contra o individuo indefeso, levando-o ao pânico à neurastenia ou a anomia. A enorme caranguejeira que levava a minúscula mosca ao desespero.

O mundo dele é “o das chancelarias, das repartições, dos arquivos, das salas e escritórios mofados, abrigados em edifícios decadentes”. E, para descrevê-lo, Kafka necessitou de uma prosa própria, original, a fim de desmascarar a demência que enredava o homem contemporâneo. Este se sentiu uma “vítima desarmada” em vésperas de ser triturada pelos poderes quase que sobrenaturais que a burocracia amealhou no tempo contemporâneo.

Para os críticos de origem judaica, boa parte da sua literatura tentou reproduzir metaforicamente a sensação de isolamento, incerteza e temor que acompanhava permanentemente a comunidade judaica da Europa em sua totalidade. Isto é que fez Walter Benjamin entendê-lo como um notável autor de parábolas que podiam ter diversas interpretações (in Franz Kafka – propósito do décimo aniversário de sua morte, 1934).

O conto de horror mais famoso dele, Die Verwandlunga (A Metamorfose), pode ser lido tanto como a situação desesperada do próprio Kafka atormentado pelos sabidos rigores impostos por seu pai Herrmann, um tirano que reduzia o filho a um nada, ou ainda como a história de um anônimo qualquer, confuso e aterrorizado perante as armadilhas da vida, percebendo-se um inseto não merecedor de qualquer consideração. (*)

(*) Alargando-se a metáfora do homem-inseto, se confirma mais uma profecia kafkiana. Dois anos depois de redigir o terrível conto, começou a Grande Guerra (1914-1918), na qual milhares de soldados, equiparados aos insetos, foram exterminados nas trincheiras por gás venenoso. Na Segunda Guerra Mundial, o gás voltou a ser empregado pelos nazistas no massacre dos judeus europeus e de outras minorias.

Kafka como profeta – “Há um tremendo mundo que habita dentro de mim”

Os personagens de Kafka (“K”, em O Castelo, “Joseph K”, em O Processo etc) são tipos quaisquer envolvidos por sutis fios invisíveis manipulados a distancia por peões sem expressão que os levaram à perplexidade, à impotência ou à morte.

Veem-se ignorados ou esmagados por fatores transcendentais que os paralisam perante a vitória do absurdo e do grotesco.

Como recomendou um dos seus personagens: “Um procedimento um pouco mais ligeiro, uma certa distensão, só cabiam na relação direta com as autoridades, ao passo que no demais era sempre necessário um grande cuidado, um olhar em volta para todos os lados antes de cada passo” (O Castelo 2000, pág. 93).

Monstro acéfalo

Nunca se vê a cabeça deste gigantesco aparelho, incansável fabricante de decretos e devorador de papéis: o onipresente grão-chefe da burocracia. (*)

O cidadão só se depara com seus tentáculos. Os dos meticulosos funcionários que exercem poderes de vida e morte sobre aqueles que, desgraçadamente, são obrigados a recorrer a eles. Estes condutores de um mundo infernal emperram-lhes a vida o máximo que podem (os documentos necessários quase nunca estão completos, sempre observam a ausência de uma assinatura, a expiração de uma data ou a falta de um carimbo etc). Os demandantes são vistos pelos burocratas, na maioria das vezes, como Rattenvolk, “O povo dos ratos” (conto de Kafka, de 1924).

O local – departamento, seção etc – que lhes apontam como o habilitado a resolver os seus problemas quase nunca é o exato, constrangendo-os a realizar inúmeras e inúteis caminhadas por corredores e andares fantasmagóricos, com a maioria das portas fechadas e funcionários amorfos e carrancudos posicionados atrás do balcão-trincheira sem nenhuma disposição em atender seja lá quem for. Como disse o personagem K de O Castelo: “E quem precisa de botas nesses caminhos eternamente vazios?”.

(*) Os personagens de O Castelo e O Processo, por exemplo, jamais se encontram com a autoridade maior. Joseph K é executado sem saber por qual crime e por qual autoridade.

A visão dele, consciente ou não, foi premonitória ao chamar a atenção para este polvo invisível que impera nos bastidores das sociedades modernas. Era a renovação do demônio, cuja voracidade pelo poder chega a atravancar até os próprios governos que diz servir. Por outro lado, lhes-é extremamente útil.

Não podemos imaginar o eficaz controle que os impérios coloniais europeus exerceram sobre os seus súditos e os milhões de indivíduos na África e na Ásia sem o socorro desta aparelhagem multitentacular. Como não nos é possível supor a realização do genocídio nazista ou a administração dos campos de trabalho forçado na URSS (o GULAG) sem a recorrência e conivência das respectivas Máquinas Burocráticas, reaparelhadas como matadouros ou supercárceres. (*)

Não sem motivos, as infindáveis queixas e reclamos dos cidadãos dos nossos dias, inclusive das altas autoridades e representantes das poderosas corporações, remetem sempre aos entraves e obstáculos criados pela burocracia. O horror a ela é consensual. Ninguém sente coragem ou força para enfrentá-la, escravizados pelos decretos, regulamentos, documentos exigidos, firmas, selos, carimbos e também pelo seu peculiar mau humor, acatam impotentes suas despóticas determinações.

(*) Tanto os nazistas como os stalinistas agiram do mesmo modo às obras de Kafka, proibindo-as. Entenderam-nas, corretamente, diga-se, como um ataque direto às suas máquinas repressivas por expô-las como promotoras da desumanização dos cidadãos e um monumento à irracionalidade. Na Tchecoslováquia, os livros de Kafka foram liberados entre 1945 e 1968, mas logo em seguida à invasão soviética de agosto de 1968 eles voltaram a ser banidos. Hoje, o autor é o orgulho dos praguenses e do governo tcheco pós-comunista e alvo de permanente atração turística.

Especial Portal Terra